Lixo e Consumo

Reproduzo matéria de Carolina Cantarino sobre a relação entre consumo e lixo. Uma atenção especial para o projeto MetaReciclagem e sua transgressão emancipatória seria oportuna no debate sobre o lixo. Precisamos mesmo de uma percepção mais crítica acerca do modo como o lixo vem sendo apropriado como conceito, bem como de iniciativas transgressoras reinventando sentidos para o lixo e revigorando o aspecto político de que tais sentidos podem se revestir.

Lixo e consumo: retrato do que somos? 

A imensa quantidade de resíduos sólidos produzidos no Brasil e no mundo exige a invenção de outras formas de se consumir e produzir

Por Carolina Cantarino
Lixo e consumo: retrato do que somos?
15/10/2011

Reciclagem, consumo consciente, sustentabilidade, responsabilidade social – palavras e conceitos que fazem parte de um vocabulário cada vez mais desgastado em torno da necessidade de se rever as práticas de consumo que marcam o mundo contemporâneo e a imensa quantidade de lixo que estamos produzindo. Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, publicado pela Abrelpe (Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), foram produzidos 60,8 milhões de toneladas de lixo no país, só no ano de 2010.

Slogans como “cada um faz a sua parte” compõem o marketing de empresas e indústrias. A reciclagem, por sua vez, tende a ser apontada como a principal solução para o problema, enquanto a produção do lixo tende a ficar em segundo plano ou sequer ser discutida. “A reciclagem é um bom conceito. Mas não adianta investir nisso sem, ao mesmo tempo, questionar o modelo de produção e consumo que temos, e que ainda é o da aquisição e descarte permanente de produtos. É como se a reciclagem funcionasse como garantia de que é possível consumir mais e mais”, diz Luciane Lucas dos Santos, socióloga e pós-doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.

A obsolescência programada – quando produtos são concebidos pela indústria para se tornarem inutilizáveis num curto prazo de tempo – é expressão da lógica de consumo vigente, marcada pela aceleração, pela busca do novo, pela urgência e pelo desperdício. Paradoxalmente, acumulação e descartabilidade combinam-se na configuração da economia global: enquanto países africanos enfrentam crises humanitárias relacionadas à falta de alimentos e à fome, na Europa e nos Estados Unidos toneladas de carne, legumes e cereais são jogadas no lixo ou mesmo queimadas para que o preço dessas commodities mantenha-se elevado no mercado financeiro.

“A produção de lixo que temos hoje diz muito sobre o nosso modelo de desenvolvimento e, por isso, não é possível pensar o consumo desvinculado da produção”, adverte Luciane, especialista em sociologia do consumo. Por isso, o “cada um faz a sua parte” pode invisibilizar dimensões importantes do consumo tais como o chamado consumo produtivo: a exploração de recursos naturais (terra, minérios, água, ar) pelas grandes corporações na fabricação de produtos destinados ao consumo individual. Aliás, quanto nós sabemos a respeito das cadeias produtivas dos produtos que consumimos? Em que medida nossas escolhas de consumo são “conscientes”? Inventar outras formas de se consumir passa por pensar nessas questões, atentando-se de forma crítica, portanto, para a relação entre produção e consumo.

Consumo e cidadania?

A Inglaterra, no início do mês de agosto desse ano, assistiu a violentos enfrentamentos entre jovens moradores da periferia de grandes cidades, como Londres e Manchester, e forças policiais. Carros e prédios incendiados, vitrines quebradas e muitos saques a lojas foram as imagens que correram o mundo através da mídia. As rebeliões foram convocadas via mensagens de texto e redes sociais e muitos jovens chegaram a postar fotos com tênis, i-pads e outros produtos furtados das lojas arrombadas.

A onda de distúrbios teve início após uma manifestação que pedia justiça em razão do assassinato de Mark Duggan, um jovem negro supostamente morto a tiros pela polícia britânica. Mas, além dessa motivação inicial, o que explicaria a onda de saques que tomou conta dos centros comerciais das grandes cidades inglesas? O sociólogo polonês Zigmunt Bauman arriscou uma interpretação: a desigualdade social entre os que têm e os que não têm. Se os objetos de desejo de consumo se multiplicam cada vez mais, os sentimentos de insatisfação, frustração, rancor e humilhação, por não poder tê-los, também cresceriam na mesma medida.

Bauman ressalta como a valorização do consumo no mundo atual faz com que ele seja tomado como saída e solução para todo e qualquer problema, seja ele pessoal ou social. O sociólogo lembra que, no dia seguinte ao ataque às Torres Gêmeas em Nova Iorque, o conselho dado pelo presidente George W. Bush aos norte-americanos, para que superassem o trauma e retomassem a sua rotina, foi: “vão fazer compras”. O consumo, no mundo contemporâneo, se tornou sinônimo de sucesso, felicidade e bem-estar. Por consequência, os que não têm “poder de compra” são estigmatizados como fracassados, perdedores e infelizes. “Eu compro, logo sou” e “comprar ou não comprar, eis a questão” seriam, conforme Bauman, os emblemas dessa época em que, através do consumo, mercantilizamos valores e hierarquizamos vidas.

“Para os consumidores com defeito (aqueles contemporâneos que não têm), não comprar é o agudo e exasperado estigma de uma vida incompleta – da própria nulidade, do não prestar para nada. Não se trata apenas de ausência de prazer, mas ausência de dignidade humana, de sentido para a vida; em última instância, ausência de humanidade e de qualquer outro motivo para respeitar-se a si próprio e aos outros”, enfatiza Bauman.

A lógica social do consumo estabelece que o modo como você se veste, o que você come, os lugares que você frequenta e os objetos que você usa comunicam algo sobre o que você é: a que grupo social você pertence, o lugar onde você mora, seu trabalho, sua renda, seus status etc. “Tudo isso passa a ser um problema quando o consumo legitima um sistema de classificação social que naturaliza uma hierarquia entre diferenças, entre grupos e pessoas”, lembra Luciane.

Por conta disso, a cidadania muitas vezes é pensada como democratização e maior acesso ao consumo. “A cidadania não pode advir da lógica dominante do consumo que, por princípio, classifica e hierarquiza os sujeitos, definindo previamente posições sociais. Ela só pode advir de formas de troca que sejam mais igualitárias”, acredita Luciane.

Reapropriação

“O momento em que uma coisa se transforma em outra é o momento mais bonito. É um momento mágico”, diz o artista plástico Vik Muniz, conversando com Isis, Zumbi, Tião, Suelem e outros catadores de material reciclável que trabalham no maior aterro sanitário do mundo: o Jardim Gramacho, na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Todos fazem parte do documentário Lixo extraordinário (Brasil, Reino Unido, 2010), que narra a participação conjunta do artista e dos catadores num projeto que propõe transformar lixo em arte e, assim, dar visibilidade a esse universo desconhecido do armazenamento do lixo no Brasil, que já foi tema de pelo menos outros dois documentários: Ilha das flores (1989) e Estamira (2004).

Depois de assisti-los, é difícil esquecer das montanhas imensas de lixo que formam a paisagem dos lixões e aterros sanitários. Ainda mais difícil é esquecer os personagens que habitam esse cenário: catadores e catadoras que vivem na miséria extrema, convivendo lado a lado com o excesso de objetos consumidos e descartados por outros. Esses documentários escancaram a relação entre desigualdade social e consumo que faz com que não somente bens e objetos se tornem descartáveis e invisíveis ao serem jogados fora: também vidas e pessoas acumulam-se nos lixões e aterros das grandes cidades brasileiras.

Lixo extraordinário registra como os catadores de material reciclável fazem do lixo a sua fonte de renda e têm se organizado em cooperativas e associações que lutam pelo direito à saúde, moradia e educação (leia artigo). Registra também o saber dos catadores e catadoras de que, para continuar lutando pela vida, nessas condições extremas, precisam improvisar com o pouco que têm, reapropriando-se de objetos usados, dando novos sentidos a eles. Em vez de enfatizar sua indigência, o documentário escolhe valorizar a criatividade dos catadores.

Bricolagem ou mesmo remix são os conceitos com que se costuma nomear essa habilidade cultural de se criar coisas novas a partir da reapropriação de objetos ou conhecimentos. É também o conceito que guia a proposta da MetaReciclagem, uma rede auto-organizada que conecta diversos coletivos ligados à reapropriação da tecnologia.

Em vez do descarte ou mesmo da reciclagem (leia reportagem), os projetos do MetaReciclagem querem estender ao máximo a vida útil dos equipamentos eletrônicos, criando outras maneiras de se utilizá-los. As experiências que compõem a rede vão desde a criação de laboratórios de informática (telecentros) em projetos sociais, com computadores recebidos através de doações, à capacitação em relação ao funcionamento e criação de alguns hardware e software – entender como funciona um computador ou mesmo trabalhar com programação, desmistificando o receio em torno da tecnologia. Há também iniciativas de experimentação com lixo eletrônico: desmontar máquinas velhas e usar seus componentes para a criação de brinquedos eletroeletrônicos em oficinas de robótica. O princípio – e por isso se fala em “gambiarra” e “metareciclagem” – é o de que um aparelho pode ser reutilizado de outra forma que não a finalidade para o qual foi originariamente idealizado.


Integrantes da MetaReciclagem engajaram-se na discussão sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (leia reportagem) porque o problema do lixo eletrônico corria o risco de ficar de fora do projeto, por pressão da indústria que não quer arcar com os custos envolvidos com o descarte desse material (veja infográfico sobre lixo eletrônico). A reinvindicação, que acabou entrando nesse documento, depois de muita pressão política, é a da chamada logística reversa (leia artigo sobre o assunto): os equipamentos eletrônicos, quando forem descartados após o consumo, devem ser encaminhados ao fabricante; ele é o responsável pela deposição final dos produtos.

Por causa de exemplos como o das latas de alumínio, a tendência é pensar que a reciclagem é sempre lucrativa. Não se costuma levar em consideração seus altos custos, os resíduos gerados no processo reciclador (gastos com água, energia e emissão de gases, por exemplo), nem o fato de que cada material a ser reciclado pede tecnologias específicas, muitas vezes monopolizadas por indústrias, o que impede a sua disseminação.

 “A objeção da indústria em assumir a logística reversa é justamente essa: reciclagem de lixo eletrônico não dá lucro. Além disso, alega que grande parte dos eletrônicos no Brasil não foram produzidos aqui, por eles. De qualquer forma, uma solução para o problema precisa ser pensada, pela indústria, pelo poder público, pela sociedade. O problema é de todos”, ressalta Felipe Fonseca, um dos integrantes do movimento MetaReciclagem, em um debate on-line sobre lixo eletrônico realizado no final de setembro deste ano.

Consumo e emancipação

Até que ponto nós conhecemos os produtos que estamos consumindo? A pergunta vale tanto para equipamentos eletrônicos quanto para outros produtos que consumimos intensamente e desconhecemos o modo como são produzidos: os que compõem nossa alimentação, por exemplo.

 A facilidade da compra nos supermercados dificulta a visualização da cadeia produtiva dos alimentos. Empresas e indústrias podem lançar mão de maus-tratos aos animais, exploração de trabalho escravo e infantil, desmatamento e poluição para produzir carne, legumes, verduras, produtos enlatados e outros alimentos que, muitas vezes, de tão processados industrialmente, nem mesmo conseguimos identificar sua procedência ou sabor.

A questão é que a publicidade e a propaganda tendem a obscurecer problemas como esses, impedindo que as conexões existentes entre as diferentes etapas do processo produtivo e o produto pronto que consumimos sejam tecidas. Um consumo efetivamente consciente, sustentável e crítico depende da atenção dada ao modo como essas empresas e indústrias estão fabricando seus produtos.

Uma alternativa viável consiste em diminuir a distância entre produtores e consumidores. Essa é a proposta da Sexta na Estação, feira promovida pela Rede de Agroecologia da Universidade Estadual de Campinas (RAU), que permite que verduras, frutas e legumes sejam comprados diretamente dos produtores rurais da região de Campinas. A feira comercializa exclusivamente produtos de origem orgânica – sem agrotóxicos – e que também são cultivados segundo os preceitos da agroecologia, dentre eles a valorização dos saberes dos produtores rurais.

“A preocupação, nesse caso, não é apenas econômica, mas também com a autonomia do agricultor familiar e com o desenvolvimento local. E o consumidor, por sua vez, em contato direto com o produtor, tem acesso a um alimento seguro – porque conhece sua origem – e também mais fresco e saboroso”, ressalta Márcia Tait, pesquisadora de movimentos rurais de mulheres, tecnologias sociais e integrante da RAU.

A aproximação entre produtores e consumidores também é a proposta dos chamados clubes de troca. Realizam-se feiras nas quais produtos, serviços e saberes são trocados através da adoção de moedas sociais. Estima-se que, somente na Argentina, onde essas experiências tiveram início ainda em meados da década de 1990, existam cerca de 10 mil clubes com a participação de seis milhões de pessoas. No Brasil, cidades como Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre já contam com esses mercados solidários.

Neles, cria-se uma relação de equivalência entre produtores e consumidores. O produtor também é consumidor, e vice-versa. Quem deseja adquirir alimentos de um produtor rural pode “comprá-los” oferecendo em troca o ensino de uma língua, por exemplo. “Em relação aos clubes, podemos falar de uma ecologia das trocas: a reunião de saberes, tempos e diferenças. Uma convivência igualitária entre diferentes modos de viver e estar no mundo”, destaca Luciane. Outra mudança importante diz respeito à acumulação: a produtividade é proporcional à necessidade dos envolvidos; não há sobras ou excessos. O ritmo e o tempo de produção é outro.

Assim como Márcia Tait, Luciane ressalta que as alternativas de consumo a partir dos mercados solidários não devem ser vistas apenas como alternativas econômicas: criam-se novas formas de sociabilidade, mais solidárias e igualitárias. Além disso, são experiências pontuais, mas que põem em xeque a crença nas grandes escalas, de que apenas as grandes soluções tecnológicas são capazes de promover transformações sociais.

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