Violência doméstica, machismo e consumo de representações

Na última atualização dos dados do Ministério da Saúde, foram assinalados 70.285 casos de atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica. Neste contexto, 43.654 mulheres foram mortas, no Brasil, na última década (2000-2010), sendo registrados 4465 homicídios femininos só no ano de 2010. Estes e outros dados importantes para que se entendam os contornos da violência doméstica podem ser acessados no excelente estudo "Mapa da Violência 2012 - atualização: homicídio de mulheres no Brasil", produzido por Julio Waiselfisz, numa parceria CEBELA/FLACSO: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/pesquisas/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf.




Observando a questão mais de perto

A questão da violência doméstica é muito séria e se alimenta do silêncio. A naturalização social do machismo (nas suas diversas formas de manifestação) é, sem dúvida, uma das causas de tamanho alastramento da violência.



 A violência contra a mulher, entretanto, não tem um único rosto, o que dificulta que se tenha um retrato nítido do seu alcance. Ela pode manifestar-se não só no espaço da casa - em que a mulher é silenciada no direito de expressão, é maltratada fisicamente e abusada no seu direito de ir e vir -, mas, também, no espaço do trabalho e na vida pública, através do assédio moral e sexual e das representações do feminino que se espraiam no imaginário social. A violência contra as mulheres (sim, porque elas são muitas e não são iguais) se manifesta de variadas formas. Uma delas é a violência económica, que o sistema capitalista de produção estimula e reproduz. Sabe-se que, hoje, muitas mulheres são responsáveis pelo sustento de suas casas e de seus filhos; ainda assim, continuam sem equiparação salarial aos homens que fazem tarefas semelhantes, sendo submetidas, muitas vezes, a condições degradantes de trabalho, como vemos frequentemente nas indústrias de flores ou de pescado.

Somam-se à violência económica a violência social, a violência simbólica e a violência epistêmica (quando seus saberes e seus modos de construir sentido são reduzidos em importância no âmbito de um imaginário androcêntrico). Todas estas formas de violência aglutinam-se, sendo perigosamente naturalizadas no quotidiano de reprodução material e social destas mulheres.

Há uma outra forma de violência que as ronda e que constitui uma espécie de armadilha invisível nos próprios debates de gênero.  Acontece quando as mulheres são tratadas como se falassem em uníssono, como se seus mundos fossem de uma única cor ou matiz. Os problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência platônica a compartilhar. Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que abatem ainda mais o corpo da mulher pobre.

Há muitos pontos comuns entre as mulheres, mas é preciso tornar audíveis as diferenças, sob pena de se ignorar ou reduzir de importância as múltiplas e relevantes lutas travadas pelas mulheres: contra o racismo, pela diversidade sexual, contra a pobreza excludente.

 Contra o machismo

Isto não significa que não haja lutas comuns a todas estas mulheres: a batalha contra o machismo - nas ruas, em casa e na imaginação social - é uma delas. Discutir o consumo das representações do feminino e sua banalização na vida quotidiana é, assim, de grande importância.

Para combatermos socialmente o machismo que constitui raiz da violência doméstica, é preciso também atentar para as representações sociais do feminino e do masculino que (nós) ajudamos a consolidar e que a mídia, todos os dias, fomenta e dissemina. Há dois espaços em que são fortalecidas estas representações: o da audiência midiática e o da família. Não devíamos achar graça de mulheres servidas como engradados de cerveja nas casas dos homens, nem quando seus peitos são retratados como foguetes em latas de cerveja. Parece engraçado? Mas não é. Inocente? De modo algum. Se por um lado o discurso (midiático, publicitário) procura reproduzir o social, é importante que se diga que ele também, e fundamentalmente, fomenta o que se constitui como imaginário.





A violência contra as mulheres também pode encontrar ressonância na educação que os meninos recebem dentro de casa. Este é, sem dúvida, um terreno mais pantanoso para a discussão, mas merece uma reflexão mais atenta por parte de mães e pais. A divisão sexual de tarefas e papéis dentro e fora da casa, a permissividade com certos comportamentos dos meninos com as colegas e a reprodução de relações desiguais de gênero desde tenra idade são fatores que conformam o machismo e, por consequência, abrem flancos para esta banalização da violência contra a mulher. Quem ensina que os homens não precisam (e nem devem) fazer nada dentro de casa? Quem estimula sua agressividade com um imaginário de competição e gosto por brincadeiras violentas? Como se constrói o estereótipo da mulher-princesa, cuja finalidade é esbanjar beleza e encantar os homens que a circundam? Como a violência se naturaliza na imaginação e no quotidiano das pessoas?

Os números da violência doméstica contra as mulheres assustam. Não só porque continuam a crescer, numa espiral ascendente, mas, também, porque o número de mulheres que denunciam os maus-tratos sofridos é desproporcional ao que revelam as estatísticas. Também é digno de nota o caráter cíclico da violência sofrida pelas mulheres, como atesta o Mapa da Violência 2012:

"Os pais aparecem como os agressores quase exclusivos até os 9 anos de idade das mulheres, e na faixa dos 10 aos 14 anos, como os principais responsáveis pelas agressões. Nas idades iniciais, até os 4 anos, destaca-se sensivelmente a mãe. A partir dos 10 anos, prepondera a figura paterna como responsável pela agressão. Esse papel paterno vai sendo substituído progressivamente pelo cônjuge e/ou namorado (ou os respectivos ex), que preponderam sensivelmente a partir dos 20 anos da mulher, até os 59. A partir dos 60 anos, são os filhos que assumem o lugar de destaque nessa violência contra a mulher" (link acima, p. 20).

Boas notícias

Felizmente, as mulheres que sofrem violência já não estão sozinhas. As do Capão Redondo e de Campo Limpo contam, hoje, com o "Mulheres Vivas - Centro de Defesa e Convivência da Mulher" (http://www.facebook.com/mulheresvivas), que acolhe, apoia e acompanha a história das mulheres que sofrem violência doméstica. O clube de trocas CEU-Casablanca (http://www.facebook.com/clubedetrocascasablanca?fref=ts) recebeu, na sua mais recente edição, o pessoal do Mulheres Vivas para um bate-papo sobre o tema. Foi uma iniciativa excelente que, somada a outros bate-papos deste tipo, permite identificar o círculo vicioso da violência doméstica, estimulando maior solidariedade entre estas mulheres, ao"destapar" o segredo.

Introduzir conversas como esta em rodas de mulheres (e homens) por ocasião das feiras de troca é, portanto, uma oportunidade ímpar para se debater, em termos mais amplos, o sentido (e a prática) do respeito à dignidade humana.Trata-se de mais uma evidência de que as iniciativas por uma outra socioeconomia não se restringem ao fenômeno económico propriamente dito. Vão além, à medida que promovem laços de solidariedade, compartilhamento de histórias de vida e busca de soluções coletivas para problemas comuns.

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Conheça Maria da Penha, que sobreviveu aos maus tratos do marido e virou nome de Lei. Artigo muito bom da revista TPM
  • http://revistatpm.uol.com.br/revista/82/paginas-vermelhas/maria-da-penha.html#0

    As fotos foram encontradas em:

    - mulher pedindo ajuda: http://becodosaflitos.blogspot.com.br/
    - mão masculina e mão feminina:http://conradopaulinoadv.com.br/blog/?tag=domestica
    - latinha: no link http://www.folhavitoria.com.br/geral/blogs/midiaemercado/2013/01/21/os-imbativeis-invadiram-a-vessa-com-criacao-da-ball.html
    - campanha de cerveja: http://obviousmag.org/archives/2007/11/fnazca_e_os_anu.html

Comentários

  1. Uma reflexão profunda sobre a imagem da mulher e como a manipulação desta imagem alimenta o ciclo da violência, desde a simbólica, passando pela psicológica até a física, levando inclusive à morte de muitas mulheres. Tando a fragilização quanto a super sexualização da imagem feminina criam esteriótipos que alimentam a violência e negam a face real das mulheres, esta face que é tão múltipla quantas somos, não umas como as outras, mas também não somos tão diferentes, somos singulares e temos o direito de mostrar nossa face real. Parabéns pelo texto e obrigada por divulgar nosso trabalho no Clube de Trocas. Grande beijo.

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