Algumas notas sobre o Consumo




Abaixo, o "making off" de uma entrevista que não chegou a ser publicada. O veículo preferiu uma outra matéria da qual eu faço parte. Pessoalmente, prefiro esta. Como o material terminou não sendo utilizado, estou postando aqui. As perguntas foram da jornalista Carolina Toneloto para a Revista Pré-Univesp.

 1. A partir de quando, e por que, o consumo das pessoas, famílias, e grupos sociais distintos passou a se acelerar? É possível manter, ou continuar acelerando este processo até quando? Como situar os países mais pobres neste cenário?

Contrariamente ao que se costuma pensar, a cultura de consumo não é uma particularidade do mundo contemporâneo, já fazendo parte das sociedades dos séculos XVII e XVIII, conforme nos relata o historiador Peter Burke.  Por outro lado, a obsolescência que conforma a cultura de consumo na sociedade contemporânea constitui um fenômeno relativamente recente. Embora o sentido de diferenciação social já estivesse presente no século XIX, por exemplo, é no período compreendido entre as décadas de 40 e 70 do século XX que tem início uma certa estética da efemeridade. Esta estética do descartável se torna hoje um dos elementos definidores da cultura de consumo e, progressivamente alimentada pelas representações sociais que a mídia aciona, tem produzido significativos impactos ambientais, sócio-econômicos e culturais.

Contudo, esta descartabilidade como parâmetro norteador do consumo não se sustentará indefinidamente. Não há condições para isto. Conforme mostra o Relatório Estado do Mundo 2010, do Worldwatch Institute (veja-se http://www.worldwatch.org.br/estado_2010.pdf), enquanto o consumo cresceu seis vezes entre 1960 e 2010, a população cresceu apenas 2,2 vezes (entre 1960 e 2006). O mesmo estudo aponta que, entre 1950 e 2005, “a produção de metais cresceu seis vezes, a de petróleo, oito, e o consumo de gás natural, 14 vezes” (Worldwatch Institute, 2010: 4). 

Como os recursos são finitos e o consumo, desigual entre os países, é de se esperar que a situação implique uma maior e progressiva desigualdade entre as nações, ampliando também certa violência estrutural no âmbito das economias. Como consequência desta distribuição desigual de recursos, podemos assinalar: (1) o aumento da compra de terras por governos e empresas estrangeiras em países mais vulneráveis economica ou politicamente (landgrabbing) de modo a garantir acesso a recursos como água, terra e minerais; (2) uma divisão internacional do trabalho que se naturaliza no âmbito de uma economia global, configurando relações de trabalho cada vez mais exploradoras (que o digam os operários da China, de Bangladesh, do Sri Lanka e da Indonésia, para citar alguns); (3) a proliferação de grandes impactos sociais no âmbito dos países, já que, em nome dos grandes projetos económicos, minorias são desatreladas de seus territórios, a exemplo do que vem acontecendo com diversos povos indígenas no Brasil em função dos interesses do agronegócio exportador, da mineração e dos complexos hidrelétricos.

 Esta relação nem sempre é clara, já que não estamos habituados a relacionar nossos hábitos de consumo com os recursos que são necessários para produzi-los. Muita gente não sabe, por exemplo, que por trás da sede de novidades tecnológicas (laptops, celulares, pads), existe uma demanda crescente por coltan (columbita-tantalita) e que, muitas vezes, a demanda deste minério no mercado internacional implicará o acirramento da guerra civil em países como a República Democrática do Congo. Exemplos como este não faltam. Muitos dos que associam a figura do carro a conforto, elegância e praticidade pouco ou nada sabem das condições sub-humanas em que trabalham os cortadores de cana – aqueles que produzem o combustível que alimenta o carro. Cada trabalhador do canavial, segundo estudo da Embrapa (veja-se http://www.cnpm.embrapa.br/publica/download/Doc_77.pdf), corta, em média, 12 toneladas de cana, caminhando cerca de 8 a 9 km diários e carregando uma média de 15 kg durante 800 trajetos. Exemplos como estes nos fazem perceber que não é possível discutir o consumo, na cultura material, à parte de suas cadeias produtivas.

2.  De que modo a obsolescência programada de produtos se relaciona com a aceleração do consumo? 

Bem, a obsolescência tornou-se a mola propulsora do consumo. Antes, a qualidade de um produto era determinada, em grande parte, pelo seu tempo de vida. Hoje, a durabilidade deste mesmo produto – uma geladeira, por exemplo – tornou-se, de certo modo, irrelevante, já que ninguém mais espera que ela dure dez, vinte anos. As inovações permanentemente introduzidas nos produtos convidam os consumidores a testarem novos modelos e marcas a intervalos cada vez menores. Conforme o relatório que citei há pouco, o “Estado do Mundo 2010”, “só em 2008, pessoas do mundo todo compraram 68 milhões de veículos, 85 milhões de geladeiras, 297 milhões de computadores e 1,2 bilhão de telefones móveis (celulares)” (Worldwatch Institute, 2010: 4). A publicidade, por sua vez, se encarrega de fomentar a ciranda de produtos, naturalizando este processo de descarte e substituição ininterrupta. Mas a publicidade não está sozinha nesta tarefa. Todo um aparato comunicacional, voltado à construção das marcas, é posto a serviço da retroalimentação do consumo: de eventos a promoções, de merchandising no ponto de vendas à exibição de produtos nas novelas. 

Neste ponto, é importante ressaltar outro aspecto, já que é comum vislumbrarmos a obsolescência como a pior parte do problema. Dois mitos precisam aqui ser desfeitos para que se compreenda outros pontos nevrálgicos ligados ao modelo de consumo que adotamos: o primeiro mito é o de que o consumo implica, necessariamente, a aquisição de bens materiais. Nós consumimos também bens simbólicos, concepções de mundo, representações sociais, estilos de vida. O segundo mito refere-se à crença de que o consumo seja um ato individual. Embora ele pareça ancorar-se na escolha do indivíduo, o repertório que sustenta e valida o consumo é social, como já nos advertira Michel de Certeau. Isto quer dizer que, embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem, como o próprio Certeau afirma, eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente. São estes significados sociais, aliás, que conferem poder simbólico aos bens que circulam, fundamentando a busca individual e coletiva por pertencimento e diferenciação. E por que este aspecto do consumo seria tão importante quanto discutir a própria obsolescência? Porque esta produção simbólica hegemónica evidencia que as condições de negociação destes sentidos não são as mesmas para todos os sujeitos. Representações hegemónicas do que é beleza, bem-estar, riqueza ou felicidade podem servir para naturalizar, no imaginário social, hierarquias entre diferenças (de gênero, de etnia, de classe). Esta monocultura da naturalização das diferenças, nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos,  me parece um dos pontos mais preocupantes a analisar numa crítica do modelo capitalista de consumo.

3. Em que medida o consumo é uma ameça à sustentabilidade ambiental dos países?
 
O termo sustentabilidade ambiental sempre me parece insuficiente para dar conta da crítica que precisamos fazer às inúmeras externalidades que o modelo neoextrativista de desenvolvimento tem provocado. Não se trata, portanto, de uma questão meramente ambiental, embora esta seja, sem dúvida, muito séria. Vejamos um exemplo: as reservas hídricas do Brasil. Embora muita gente, hoje, celebre os resultados do agronegócio na balança comercial brasileira, parecer haver pouca discussão em torno do conceito de “água virtual” – a água embutida na produção de commodities e hoje exportada em grande escala pelo país: são cerca de 112 trilhões de água que o Brasil exporta para outras nações[1] junto com a soja e outros produtos do agronegócio, comprometendo suas reservas hídricas. Este é, sem dúvida, um assunto sério e toca na questão ambiental.

Contudo, penso que as externalidades precisam ser colocadas numa perspectiva mais ampla, levando em conta impactos econômicos, sociais e culturais – dimensões ainda pouco discutidas nos debates sobre sustentabilidade. A questão da água virtual preocupa em termos ambientais e também da expectativa de relações comerciais mais equitativas entre nações. Mas a questão se agudiza tremendamente quando pensamos que a exportação de água (e de outros recursos, como a terra) pode implicar no comprometimento da soberania alimentar de um país. Quando o Catar “aluga” terras no Sudão para produzir seus alimentos, fica em aberto a pergunta: como fica a produção de alimentos (milho e trigo) dos próprios sudaneses[2]? Deveríamos, assim, retomar o debate sobre a distribuição equitativa dos recursos: hoje não temos paridade mínima na distribuição de recursos essenciais como a água (já que falamos dela): um americano consume água na equivalência de 29 angolanos (ou etíopes ou haitianos)[3]. É possível isto? Que consequências este consumo desigual implica? Lembrando que água, aqui, não é apenas para beber, mas também para higiene e alimentação - o que envolve a água necessária para disponibilizar alimentos e vários produtos de que necessitamos.

4. Quais os países que apresentam os maiores índices de consumo atualmente? Estes indicadores procupam seus governos? 

Pelo que sei, os Estados Unidos vêm em primeiro lugar. De novo, cito o relatório “Estado do Mundo 2010” para dar uma ideia da diferença: um europeu médio consome 43 kg de recursos por dia, enquanto um americano médio usa cerca de 88 kg – ou seja, o dobro (Worldwatch Institute, 2010: 4). Quanto à preocupação dos governos com estes indicadores, penso que ela só será efetiva quando se traduzir em macropolíticas do Estado. Se o modelo de desenvolvimento for neoextrativista – seja para satisfazer o consumo interno, seja para alavancar competitivamente a balança comercial, satisfazendo os apetites de consumo de outras nações – não haverá possibilidade de falar a sério em sustentabilidade. Não só por conta dos impactos ambientais de grandes proporções relativos aos planos energéticos e minerários, mas também por conta das consequências sociais que estes grandes projetos trazem consigo. O problema não é só numérico, de quantidade de recurso consumido. Ele tem a ver também com as relações neocoloniais que se estabelecem entre os países (ou dentro deles), a partir de uma dinâmica econômica que se alimenta da desigualdade.

Como a relação entre mineração e consumo nem sempre é clara, vale a pena explicar melhor este ponto. Os minérios estão em toda a parte e sua demanda se expande à medida que nossos hábitos de consumo se diversificam: estão nas embalagens para os inúmeros produtos que compramos (alumínio), nos automóveis que famílias reúnem nas garagens (zinco, níquel, manganês) e em diversos produtos cosméticos que cercam os rituais da estética (zinco e minerais do grupo do talco, para citar alguns). À medida que ampliamos a descartabilidade dos produtos que nos cercam, mais recursos se movem nesta geopolítica da mineração. E de forma pouco justa. Os números reluzentes desta mobilidade, que parece revestir os países exportadores com uma aura de crescimento económico e desenvolvimento, não só atualizam um colonialismo económico entre países, mas também promovem e naturalizam um colonialismo interno (Santos, 2007c), com populações sendo expoliadas nos direitos sobre seus territórios. A descoberta de importantes recursos naturais em terras indígenas e a voracidade com que as leis em vários países (nomeadamente no Brasil) ameaçam as condições de consulta efetiva acerca destes recursos exemplificam o tipo de conflito que o neoextrativismo provoca.

5.
Em sua opinião, quais são os impactos subjetivos causados pelo consumo excessivo nas pessoas? É possível que haja uma reversão do quadro do consumo acelerado para um consumo mais racional e consciente? De que modo?

Acho que, ultimamente, nós falamos muito de acesso e excesso e pouco de redistribuição. Sem dúvida, faz todo o sentido a onda de questionamentos acerca do consumismo. Entretanto, é necessário e urgente que se discuta, também, o próprio modelo de consumo, sobretudo naquilo que ele tem de mais complicado: o fato de constituir-se como um sistema de classificação social. 
Para problematizar este ponto, é preciso discutir o alcance do consumo como fenômeno social. Sabe-se que ele ocupa, hoje, um lugar de tal modo central na vida cotidiana que chega a disputar, simbolicamente, com o mundo do trabalho, o papel de eixo motriz na construção das identidades. Acrescente-se a isto um fato incontestável: todos nós operamos simbolicamente sobre o mundo - seja para comunicar quem somos, aderir a grupos com valores e códigos semelhantes ou entabular relações. Ou seja, o consumo está nas nossas vidas - e de uma forma muito intensa. A questão que se coloca, do ponto de vista subjetivo, é em que medida este modelo de consumo contribui para uma naturalização de uma hierarquia da diferença (Santos, 2007a). Hierarquia entre géneros, etnias e classes sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar no mundo e organizar a reprodução material da vida.

 A proposta do consumo consciente tem surgido como uma via de transformação do consumo. Sem dúvida, é uma boa proposta. Mas há um desafio; aliás, dois: o de não banalizar o sentido político de consciência e o de não tomar o consumo como uma questão racional, de escolha do indivíduo. Não é tão simples assim. Como falar em racionalidade quando nossas escolhas buscam garantir pertencimento e diferenciação? Como ignorar que o desejo se instala exatamente onde o sentido é construído pela validação social?

Não é possível interferir no modelo de consumo sem colocá-lo em xeque nos seus valores centrais – o escalonamento social, a descartabilidade progressiva e a acumulação desordenada (e concentrada) de bens. O consumo crítico – que pressupõe uma reflexão permanente sobre os fluxos econômicos e as cadeias produtivas – ganhará mais sentido se vier acompanhado de uma clara tomada de posição, o que significa, em outras palavras, o compromisso com a concretização de outros modos de produzir e reproduzir a vida. Neste sentido, o consumo solidário me parece uma aposta concreta em outro modo de organização da vida econômica, já que está comprometido com a reciprocidade, com a dimensão coletiva e com a solidariedade (nos termos de uma distribuição mais equitativa de bens e oportunidades). 


 O consumo solidário designa experiências de consumo que, por princípio, sejam coletivas e autogestionárias, incentivando o trabalho associado e promovendo cadeias produtivas mais justas. Nele enquadram-se experiências como os coletivos de consumidores (os clubes de compras coletivas, por exemplo), as articulações diretas entre consumidores e produtores, o comércio justo e as redes solidárias de troca, com uso de moeda social. São propostas que buscam construir um modelo de sociabilidade diverso daquele que se ancora na distinção social do consumo capitalista. Valeria muito a pena discutirmos aqui experiências de consumo solidário, mas imagino que este já seria tema para uma outra entrevista.


Luciane Lucas dos Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Integra o Núcleo Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe), bem como a equipa de investigação do Projeto Alice - projeto internacional financiado pela European Research Council, coordenado pelo Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos. Integra, também, desde 2008, o Grupo de Economia Solidária (ECOSOL),que faz parte do Núcleo de Estudos em Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades do CES/UC. Concluiu o doutoramento em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2004. Foi professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Atualmente, sua pesquisa está relacionada aos seguintes temas: teoria crítica do consumo, Economia Solidária, redes solidárias de trocas, economias originárias campesinas, economias indígenas.

Para saber mais:

SANTOS, Boaventura de Sousa (2007a). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2007b). “Para além do pensamento abissal”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro 2007: 3-46.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2007c), “La reinvención del Estado y el Estado plurinacional” Buenos Aires: Clacso, Ano VIII, Nº 22.
SANTOS, Luciane Lucas dos (2011), “Os clubes de troca na economia solidária: por um modelo crítico e emancipatório de consumo”. In Pedro Hespanha e Aline Mendonça dos Santos (orgs.), Economia Solidária: questões teóricas e epistemológicas. Coimbra: Almedina.

SANTOS, Luciane Lucas dos (2012), “A educação para o consumo no espaço da escola: criando as bases para o consumo crítico e solidário”. In Juscelino Dourado e Fernanda Belizário (orgs.), Reflexão e Práticas em Educação Ambiental. São Paulo: Oficina de Textos.


Fotos:
geladeiras: http://www.seujeitosuacasa.com/2012/05/geladeiras-retro.html
soja: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Soja-sem-desmatamento/
batons: http://dicasparamaquiagens.com.br/batom/batom-como-sugiu
Barbies: http://chicletevioleta.blogspot.com.br/2011/12/todas-as-barbies-fashionistas.html
feira de trocas: arquivo próprio

[1] BRASIL exporta cerca de 112 trilhões de litros de água doce por ano. Matéria disponível em: http://oglobo.globo.c
om/ciencia/brasil-exporta-cerca-de-112-trilhoes-de-litros-de-agua-doce-por-ano-6045674 Último acesso em 31/05/13.
[2] [2] O Catar é um pequeno país no Golfo Pérsico que possui reduzida área cultivável, razão por que importa boa parte dos seus alimentos. Para garantir sua produção alimentar, resolveu fazer acordos e “arrendar” terras no Quênia, no Sudão, Camboja e Vietnã. Para mais informações, ver matéria em http://veja.abril.com.br/101208/p_157.shtml. Último acesso em 31/05/2013.
[3] Mais dados sobre a questão da água virtual e do consumo per capita de água em diversos países estão disponíveis em infográfico publicado em dossiê sobre a água. Ver: Guia Atualidades. Dossiê Água. Edição 9, 1º semestre de 2009.

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