Sobre o singelo grafite do lápis que você usa e a forma de ocupação dos espaços. Mais uma nota sobre o consumo.

Foto da foto: http://cienciaparapequenosegraudos.webnode.pt/livros/

Estes dias recebi uma pergunta no canal do Espaço Ética, no youtube, acerca de uma palestra que dei no Café Filosófico.  A pergunta versava sobre o consumo de coisas cada vez mais "invisíveis" e seus impactos, tendo em vista que o debate do consumo produtivo poderia já não fazer o mesmo sentido. A resposta, na íntegra, está lá. Optei, entretanto, por esboçar, aqui, no blog, alguns pontos da minha resposta, considerando que esta é mesmo uma questão relevante nos debates sobre consumo.

O consumo produtivo é, de facto, apenas uma das muitas arestas do consumo. Entretanto, apesar de ser apenas um dos elementos da equação, ele aponta para um aspecto bastante importante do debate que é o da geopolítica do consumo. O que se produz em um canto do globo pode estar (e é usual que esteja) a ser consumido em outro canto do mundo, sem, é claro, os impactos sócio-ambientais inerentes. É o que chamo "produzir no vizinho como se fosse o quintal da própria casa". Exemplos não faltam - rosas colombianas, morangos quenianos, soja brasileira. O modelo de economia que abraçamos hoje estimula a naturalização desta mecânica, vincando cada vez mais as desigualdades entre países e fortalecendo não só formas de neocolonialismo económico, mas também de colonialismo interno (nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos). 

No caso do grafite - mineral sobre o qual versava a pergunta -, muitas coisas poderiam ser ditas acerca dos tais impactos ambientais, sociais e geopolíticos. Deste último, dou um exemplo breve: uma empresa australiana fazendo a prospecção de grafite e urânio no subsolo de Cabo Delgado (Moçambique), assim como em três outros países da África Austral - Botsuana, Tanzania e Zâmbia (neste caso para o Urânio). Eis a pergunta: com quem ficarão efetivamente estes recursos? E os impactos de sua prospecção? Acrescente-se que o grafite não vira apenas mina de lapiseiras e ponta de lápis, mas também insumo para uma infinidade de outros produtos na indústria, sendo utilizado para a produção de refratários, baterias e lubrificantes. Naturalmente, quanto maior for o consumo indireto destas peças, maior a demanda pelas minas a céu aberto de grafite. Mas é também preciso lembrar - não esqueçamos - que o grafite do lápis, através de caricaturas, desenhos e textos, nos pode levar mais longe, fomentando a reflexão política tão necessária para a construção de novas lógicas, dizeres e pensares.

Ainda assim, como eu disse, a questão do consumo produtivo é apenas uma das faces do problema. Os aspectos simbólicos do consumo merecem redobrada atenção, já que passam ainda mais despercebidos. Um deles é o fato de estarmos diante de um sistema de classificação social - ou melhor, da naturalização de processos sociais de hierarquização. Assim, o consumo de ideias e/ou representações refere-se menos ao fato de estarmos a comprar "coisas invisíveis" (embora isto seja uma verdade) e mais ao fato de haverem sempre "elementos invisíveis" nas coisas que compramos, sendo estas as que efetivamente fazem diferença. Por trás de cada produto, serviço ou saber que circula, há uma ideia que viceja. Esta ideia, por sua vez, pode servir de alimento à naturalização de hierarquias. Hierarquias tornadas naturais entre nós que não só vincam ainda mais a divisão de classe, como implicam, também, violências no âmbito das questões de gênero (http://monoculturadoconsumo.blogspot.pt/2013/01/violencia-domestica-machismo-e-consumo.html), raça/etnia e sexualidade, para citar algumas.

Tenho trabalhado estas e outras ideias a partir de um conceito que criei tendo por ponto de inspiração a "sociologia das ausências", de Boaventura de Sousa Santos. Trata-se do conceito de metamonocultura do consumo. A partir dele, tenho debatido como o consumo de certas ideias tem contribuído para silenciar saberes, histórias e modos de viver. Dou dois exemplos. O primeiro tem a ver com livros escolares, entendendo que livros são ideias em circulação. Na Argentina (mas não só, diga-se de passagem), os livros escolares de História celebram heróis (como o General Roca) que foram responsáveis pelo massacre de indígenas Mapuche na região da Patagônia. Estes mesmos livros são utilizados pelas crianças indígenas, obrigadas a aprender e celebrar heróis como Roca que respondem pelo genocídio de seu povo. No Brasil, os livros escolares de História não são muito diferentes, fazendo as crianças repetirem, desde tenra idade, a fatídica pergunta: quem descobriu o Brasil? 

Pois o Brasil não foi descoberto, foi invadido. Já havia indígenas por aqui na chegada de Pedro Álvares Cabral.


Bom, voltando à questão do consumo: há consumo de representações a partir de saberes partilhados nos livros escolares. Representações do que é ser herói, do modelo de desenvolvimento que se deve adotar e perseguir, do que importa ressaltar no percurso histórico de uma Nação.

Outro exemplo pode ser encontrado no post anterior - Between lemons and walls. Neste post, eu comentei, brevemente, o "consumo" (e distorção), pelo Exército Israelense, de reflexões e conceitos filosóficos - como os de rizoma e devir propostos pelos filósofo francês Gilles Deleuze - para a construção de táticas de guerra. Certamente haverá quem não considere isto consumo. No meu entender, é, já que estes saberes constituem insumos que ajudam a construir não só novos aparatos e táticas de guerra no espaço urbano de cidades como Nablus mas também (perigosas) concepções de como ocupar o espaço. Estas concepções são forjadas, referendadas e disseminadas no âmbito de programas da pesquisa urbanística, nomeadamente programas no contexto militar-arquitetônico. 

Trocando em miúdos, o consumo constitui um tema que nos leva a múltiplas reflexões. A materialidade dos objectos é um dos pontos a considerar, sobretudo tendo em vista os impactos de sua produção. Mas a materialidade de suas influências (na interlocução com o debate pós e descolonial) é outro aspecto de absoluta relevância, usualmente ignorado nas rodas de debate sobre o consumo.

Comentários

  1. Olá,

    Sempre que leio sobre consumo a política mundial me vem a memória Milton Santos, dizendo que os chefes de estado hoje são nada mais que "caixeiros-viajante" a serviço de grandes empresas. Estaríamos sempre "consumindo" uma realidade de negócios e acordos para o país, quando na verdade todo esse jogo político servirá em sua grande maioria ao interesse privado? Alias, excelente reflexão.

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    1. Oi, Leandro! Muito oportuna esta imagem do caixeiro-viajante. Não podia ser melhor. Um abraço!

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