Quando as bananas furam como facas

Não se dilui uma ofensa incluindo-se nela.


“(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Boaventura de Sousa Santos

Sinceramente, todos que acharam bacana o Neymar (e outros) empunhando uma banana devem ler o texto de Douglas Belchior, "A Farsa do Racismo Suave". O mesmo se aplica a  todos que acharam tratar-se de uma referência à evolução. Mas vamos por partes.

chamado racismo suave - e tenho dúvidas de que possa ou deva se chamar assim - não é menos duro que as explícitas formas de racismo. Quando mais não seja, porque dá a falsa impressão de o racismo aí não está. Invisibiliza as raízes profundas do preconceito semeado nos pequenos gestos e banaliza as denúncias das pessoas, atribuindo-lhes um ar de discurso ressentido. Encobre o que de facto acontece todos os dias (e de diferentes formas) com as populações negras do Brasil (mas não só). A invisibilidade política da humilhação social permanente a que são submetidas mulheres e homens negros é lapidada sempre que se iguala o que, no dia-a-dia, é marcado como hierarquia. Toda a tentativa de diluir, no discurso, a diferença (hierarquizante) com que a realidade marca os corpos deve ser vista como alienação. Não como solidariedade. A luta passa por construir justiça histórica (contextualizada e não essencialista) e por denunciar o que está encoberto  no discurso. 

Se estes argumentos não forem suficientes para evidenciar os riscos do tal racismo leve - em que o jocoso reafirma não só o preconceito social mas também a falsa identificação com o insultado -, então que os que ainda alimentam dúvidas busquem o nome de Ota Benga na internet - aquele que foi colocado junto com macacos num Zoológico do Bronx, nos Estados Unidos, para exibição pública em 1906 (cf. lembra Belchior). Os tempos passaram, mas as metáforas continuam deixando suas marcas. Eis porque dizer que somos todos macacos é uma falsa solidariedade com aquelas e aqueles que sofrem na pele o racismo. Pois como bem disse Belchior a respeito do Neymar (no episódio das bananas): "Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido”.

A pretensa "solidariedade" do slogan só revela a incompreensão dos que ostentam a frase. Primeiro porque macaco sempre foi termo pejorativo - o primeiro! - para ofender os negros. Logo, não se dilui uma ofensa incluindo-se nela ("somos todos macacos"). Sobretudo porque a ofensa é, antes de mais, historicamente constituída. Assim sendo, jamais poderá ser sentida da mesma forma por quem não foi permanentemente atingido por ela. Segundo porque o ímpeto de igualdade de uns, que o discurso afirma e promove, não apaga as diferenças sentidas historicamente no corpo e no espírito de outros. E quando digo 'outros' é mesmo proposital, já que, a bem da verdade, os negros - mas também os indígenas, os sem-terra, os sem-teto e tantos "outros" - são permanentemente construídos como imóvel Alteridade, sem lugar no projeto moderno-ocidental de mundo.

Neste caso das bananas-faca, impressiona-me a irresponsabilidade com que criativos publicitários manipulam representações e imaginários sem ter em conta o quão rasa pode ser a noção histórica das comparações que propõem. Os 'automatismos sociais' (Gonçalves Filho, 2004) são tratados como se não existissem, encobertos pelo apagamento intencional das diferenças históricas. Nada pode ser mais irritante do que campanhas do tipo One Day Solidarity. Sim, porque no dia seguinte - já no mundo real -, tudo volta a ser como antes. Brancos com privilégios; negros e mulatos para servir. Pode o discurso da igualdade súbita desfazer séculos de humilhação?

Gonçalves Filho, em diálogo com Simone Weil, descreve com precisão as engrenagens da invisibilidade pública e da humilhação social de minorias (que não precisam ser numéricas; podem ser simbólicas):

"O ambiente político da dominação começa a agir também nas horas de trégua: age por dentro (...) [A] humilhação é golpe ou é frequentemente sentida com um golpe iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. O sentimento de uma pancada torna-se compulsivo: vira pressentimento (...) 

A humilhação social é sofrimento ancestral e repetido (...) É ofensivo e falso sugerir que o que amargamos ali não está ali. É igualmente falso sugerir que está perfeitamente ali. Está ali e está antes dali: comunica-se com um golpe atual e comunica-se com golpes atrás, os primeiros golpes, os golpes originários.

E, numa bela reflexão, Gonçalves Filho conclui:

Igualdade não é categoria sobretudo económica ou cultural: é categoria política (...) Igualdade implica certamente a supressão da dominação" (2004, 13-37)

O argumento falacioso da evolução como mote criativo



Voltemos, agora, ao discurso débil de que a intenção do "slogan" sempre foi a de utilizar o argumento da  evolução - ou seja, "somos todos macacos" significando, na verdade, "somos todos descendentes de macacos". Duvido que esta tenha sido a real intenção. Supondo, entretanto, que seja, vejamos o que mostra. Primeiro, uma perigosa mistura de signos. Difícil imaginar que não haja um jogo de duplo sentido - o macaco como primórdio da humanidade e o macaco como insulto usualmente empregado. Se o duplo sentido de facto existe na peça, já que a banana foi atirada a Daniel como insulto e não para lembrá-lo da 'evolução da humanidade' - então é o segundo sentido, o do insulto, que fica subjacente e reforçado no slogan-campanha, embora não cole nos brancos corpos que se 'solidarizam'. O sentido-evolução não está à altura, como signo, para apagar o sentido-insulto.

Cabe lembrar, também, apesar de leituras inteligentes que  alguns neodarwinistas fizeram nas últimas décadas - com as quais particularmente não concordo hoje -, os equívocos e hierarquias que o conceito de evolução ajudou a plasmar nas análises acerca da sociedade. O conceito de evolução nos tem prendido no equívoco epistêmico da 'História como seta'. Visualizar que estamos presos a uma ilusão de ótica não é tarefa fácil. Sobretudo depois de séculos a lidar com a mesma ladainha - reforçada, nos tempos que correm, por uma geopolítica que se ancora num modelo evolucionista de desenvolvimento (uns sendo vistos como "mais desenvolvidos" do que outros). A permanência dos efeitos nefastos desta 'residualidade construída' se alimenta, todos os dias, do argumento falacioso das vocações económicas. 

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O texto de Douglas Belchior pode ser encontrado no seguinte link:


tags: racismo, evolucionismo nas ciências sociais, humilhação social

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Sugestões de leitura:

Gonçalves Filho, José Moura (2004). A inviabilidade pública. Prefácio. In: Fernando Braga Costa. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Editora Globo.

Santos, Boaventura de Sousa, Nunes, João Arriscado (2004). Para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Boaventura de Sousa Santos (org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Porto: Afrontamento.

Weil, Simone (1996). A condição operária e outros estudos sobre a opressão. São Paulo: Paz e Terra.

Fonte das fotos:
http://multinverso.blogspot.pt/2012/01/cotas-desigualdade-racismo-senzala.html
http://sociologiapolitica.com.br/2013/05/17/a-evolucao-humana-atraves-do-conhecimento/

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