Aquilo que o Ocidente não vê nem compreende





Recentemente, fui presenteada com um texto belíssimo, escrito por um companheiro indígena Kuna, do Panamá - Cebaldo Inawinapi. Compartilho por aqui, com a devida autorização do autor.

O texto nos mostra a riqueza das cosmovisões e práticas indígenas. Mostra-nos, também, a limitação da visão ocidental de mundo. 

Propõe-nos, antes de mais, uma nova percepção sobre o sentido da placenta e do cordão umbilical em sua materialidade e em termos simbólicos.Perspectiva que se distancia profundamente da forma com que a medicina e a mentalidade ocidentais entendem ambos - a saber, como algo que perde o sentido depois do nascimento da criança que através deles se alimentou e tomou forma. 

Trata-se de um texto que nos fala, de forma muito bela, do contributo que a placenta e o cordão umbilical podem assumir na construção do sujeito e da sua sociabilidade, tanto pelo significado que ambos tiveram no momento da gestação, como também, e principalmente, pela possibilidade de ambos continuarem a atualizar, no plano do simbólico, o compromisso de nutrir. Nutrir os laços que ligam a criança aos que a rodeiam. 

O texto fala, ainda, de outros modos de construção dos afectos e das relações de confiança que vamos semeando durante a vida. Afetos que começam com a nossa primeira respiração, quando nos desprendemos do corpo da mãe, e que prosseguem a partir destes encontros fundamentais - com a mãe, a quem estivemos atados, e com a Pachamama.

De uma forma muito singela, a história de Inawinapi nos conta, também, como regamos as relações com as palavras,  fertilizando, com elas, os nossos afectos.

As palavras cuidam.

A Minha Primeira Árvore 

Por Cebaldo Inawinapi

Um dia, os meninos de uma escola perguntaram-me: Inawinapi, quando semeaste a tua primeira árvore? Em resposta narrei-lhes a história da árvorezita que se semeou comigo; é a história da árvore que bebemos e se multiplicou em alegrias, em vidas, em palavras, em outras árvores, uma árvore fecunda, uma árvore de palavras, de gestos, de sonhos, de amores… de vida!   
Nasci em Usdup, uma das 366 ilhas que formam Kuna Yala (Panamá), onde vive a maioria dos indígenas Kuna. Outros vivem no bosque tropical, em terras banhadas por grandes rios.  
Quando nasce um menino ou uma menina numa aldeia Kuna, a parteira entrega ao pai ou ao acompanhante a placenta e o cordão umbilical do recém-nascido. Vão ao bosque, à floresta, e semeiam a semente de uma árvore de fruto, uma bananeira, e a placenta serve de adubo. Placenta, cordão umbilical e semente são acolhidas pela Mãe Terra; um pedaço do novo ser, um pouco do sangue da mãe, os frutos da terra e as palavras e os cantos dos membros da comunidade que estarão sempre dispostos a falar, a conversar com a semente, com a placenta, com a terra, com a água. 
Passam meses, muitas luas, o tempo em que a planta cresce, em que a bananeira cresce e, cada vez que alguém passa ao seu lado, um membro da comunidade ou um visitante, conversará com a árvore, cuidará dela, desejar-lhe-á uma boa vida, e bons frutos, claro. Nós, Kunas, dizemos que as palavras são importantes para que as coisas vivam, para que os seres se alegrem. Assim, como qualquer ser vivo, com muito respeito e cuidado, a árvore vai crescendo. Nem só de água e sol e adubos vivem as árvores, também necessitam da palavra e dos gestos doces de mulheres e homens.     
Chegado o dia da colheita, os frutos da bananeira são levados até à aldeia e, na casa do recém-nascido, prepara-se o “madun” – um sumo de banana e cacau- e convidam-se todos os meninos e meninas da comunidade, para que bebam esta bebida germinal; a primeira cerimónia em honra do novo membro da comunidade. 
Com este acto tão simples, nós, Kunas, celebramos e agradecemos à Terra os seus frutos, celebramos e agradecemos a sua fecundidade e cantamos-lhe que continue generosa e bela, celebrando a força da Mulher e sua alegria, a amizade e solidariedade da comunidade com a nova família, e da comunidade consigo mesma.
Assim foi o semear da minha primeira árvore, semeando-me com ela, assim foi como a bebemos e a partilhei com os meus amiguitos e a minha aldeia e, desta forma, no corpo dos meus amiguitos viajou o meu sangue e o da minha mãe, viajaram as palavras amorosas dos amigos que durante todo esse tempo a cuidaram. Isto faz com que eu, que nós, habitantes fortes da Terra, a sintamos bem dentro e que sintamos as suas dores quando a maltratamos.
Hoje, tudo isso me habita, vive em mim, e eu habito nos outros também, e queria partilhar esta história convosco, amigos de uma mesma Terra, generosa, ainda que por vezes triste. Cuidemos dela, porque assim nos cuidamos a todos…!
Vosso amigo, Inawinapi, da tribo dos Kuna do Panamá. 

(tradução de Paulo Condessa)


 Fonte da imagem: http://www.deboradalsasso.com.br/tag/arvore/


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