Sobre a naturalização de uma geografia da raiva




Quando eu descobri os estudos pós-coloniais (e descoloniais, também), muita coisa mudou na minha maneira de ver o mundo. Percebi que naturalizamos situações de violência quotidiana e humilhação social, da qual só podem emanar situações de dominação e incomunicabilidade. Percebi que nossa noção de História, aquela que aprendemos na escola com muitos cortes e edições, é profundamente achatada, havendo outras versões de mundo que o arrogante Ocidente não pode suportar ou com elas conviver, já que não cabem no seu projeto moderno de civilização. Esta violência simbólica (e histórica) tem uma materialidade na vida concreta das pessoas e na vida das nações (outro conceito insuflado pelo Ocidente que pertence ao imaginário moderno). A distribuição geopolítica do poder é uma delas.

Neste contexto, o racismo, as relações patriarcais, o etnocídio e o ideocídio (Appadurai, 2009) jogam um papel importante. O racismo tem várias formas de manifestação, sendo oportuno lembrar, aqui, o racismo epistémico (Maldonado-Torres, 2008), aquele através do qual procuram-se silenciar (ou ridicularizar) outros modos de viver, pensar e sentir.

Para se analisar sem reducionismos os acontecimentos dos últimos dias é preciso olhar para a(s) História(s) em perspectiva. É preciso compreender aquilo que Arjun Appadurai (2009) tão sensatamente chamou de geografia da raiva, percebendo que ela não se materializa apenas nos atos de loucura de homens-bomba e assassinos fundamentalistas. Ela se dá também, e todos os dias, nas estratégias de humilhação e morte social de minorias muçulmanas em países europeus - e não só nestes países. Embora seja notável o mau-gosto e a islamofobia de muitas charges do Charlie Hebdo, nada justifica o assassinato dos 12 jornalistas. Mas deveria ser igualmente injustificável para todos nós as mortes dos 20 palestinos em ataque israelita à escola da ONU em Gaza em Julho de 2014. Deveríamos todos nos revoltar com os pogroms anti-muçulmanos ocorridos ao longo da História. Mas cadê a nossa revolta? Ou será que cristãos, judeus e ateus valem mais do que muçulmanos no imaginário ocidental?

Sugestão de leitura:

Appadurai, Arjun (2009), O medo ao pequeno número. Ensaio sobre a Geografia da Raiva. São Paulo: Iluminuras.
Maldonado-Torres, Nelson (2008), A topologia do Ser e a Geopolítica do Conhecimento. Modernidade, Império e Colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, 71-114. Disponível na internet.
Toldy, Teresa (2008), Allah in Deutschland? Revista Comunicação, Mídia e Consumo, v.5 (14), 33-53.  
Disponível: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/137/138 

Fonte da imagem: http://lainfo.es/pt/2015/07/05/ataques-de-islamofobia-na-franca-aumentou-235/

Comentários

  1. Uma excelente reflexão sempre acrescentando com ricas e diversas fontes de conhecimento. Tanto o que abrange a geografia e sua sugestão de leitura, e pelos estudos pós-coloniais, o que me parece ser um novo olhar sob perspectivas da história e da sociedade.

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    1. Oi, Leandro! Fico contente que o texto tenha trazido novas perspectivas. Se tiver oportunidade, leia este pequeno livrinho do Arjun Appadurai. Ele esclarece muita coisa do que se passa hoje em termos de conflito e representações redutoras do Outro. Também pode ser interessante um outro autor, Tzvetan Todorov, que escreve O Medo dos Bárbaros: para além do Choque de Civilizações. Um abraço pra vc!

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